segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Licença poética prejudicou jornalismo de Ryszard Kapuscinski?

POR  EM 25/11/2010 ÀS 02:31 PM


O jornalista, escritor e poeta polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007) (foto), que chegou a ser cotado para ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, é autor de livros esplêndidos, como “O Imperador” (sobre Hailé Selassié I, da Etiópia), “Minhas Viagens Com Heródoto”, “O Império” (a edição brasileira é “Imperium”), “Ébano — Minha Vida na África”, “Mais Um Dia de Vida — Angola 1975” e “A Guerra do Futebol” (o escritor Gabriel García Márquez apontava Kapuscinski como principal repórter do século 20. O elogio é meio suspeito, porque o jornalista, como o escritor, era entusiasta do socialismo cubano). Antes de tudo, era repórter, mas escrevia como escritor, dotado de primorosa formação intelectual e, mesmo, capacidade de imaginação. Se fosse americano, seria adepto do Novo Jornalismo ou jornalismo literário. Agora está em discussão na Europa, não apenas na Polônia, se era fiel aos fatos ou se chegava a inventá-los ou distorcê-los — adaptando a realidade à sua interpretação. A história de sua vida e de sua obra é esmiuçada no livro “Kapuscinski Non Fiction” (640 páginas), do jornalista polonês Artur Domoslawski, de 43 anos. O escritor Truman Capote dizia que escrevia romances de não-ficção. O título da biografia segue a regra do autor de “A Sangue Frio”: “Kapuscinski — Não-Ficção” (o título é irônico: sugere que o texto não é ficcional, ao contrário de algumas “investigações” do biografado). Noutras palavras, parte do trabalho de Kapuscinski é, a um só tempo, jornalismo e ficção. Isto o diminui? Desde que se saiba que a ficção está a serviço da iluminação dos fatos não há problema algum. Jornalismo, ao fazer um recorte breve da realidade, é, de algum modo, ficção. Mesmo textos mais alentados, nos quais o repórter apresenta detalhes que enriquecem a vida, tornando-a mais ampla, beiram à ficção. Se os textos jornalísticos deixassem mais espaço para a dúvida, sugerindo que, no momento da apuração da reportagem, não é possível obter informações precisas e que ainda há muito mais por apurar, certamente estariam mais próximos da realidade — que, por conta de sua complexidade, é mais nebulosa do que pensamos.
Domoslawski, que se diz “discípulo e amigo”, sustenta que não escreveu um livro devastador “contra” Kapuscinski. É um livro que, ao contar a história integral do jornalista e escritor, humaniza-o. Torna-o, na verdade, maior. Porque as contradições não diminuem um homem. Pelo contrário, torna-o mais complexo e, por isso, interessante. O que Domoslawski faz — não li o livro e comento-o a partir de uma entrevista do autor ao jornal espanhol “ABC”, de quinta-feira, 18 (as traduções ou adaptações são minhas) — é apresentar o homem do modo o mais integral possível, o que evidentemente choca admiradores e, sobretudo, parentes. As melhores biografias, que se tornam grandes peças literárias, são as que revelam o demônio interior dos homens. Parece ser o caso. Nowacka Beata e Zygmunt Ziatek, no livro “Kapuscinski — Una Biografía Literaria” (476 páginas, inédito em português), propõem outro tipo de análise, valorizando o uso que faz da imaginação, ou da literatura, para reconstruir realidades complexas.
Alfonso Armada, do “ABC”, pergunta por qual razão Domoslawski escreveu um livro tão revelador e contundente. O autor explica-se: “Quis conhecer melhor o homem que marcou tanto a minha vida profissional, provavelmente mais do que qualquer outro”. Quando se fala de “guerra contra o terrorismo, “choque de civilizações”, é preciso discutir a questão do “Outro”, afirma Domoslawski. O que o autor está dizendo é que Kapuscinski assumia, como jornalista, o papel de antropólogo, para entender o Outro, com “o” maiúsculo, sugere seu biógrafo. “Suas ideias críticas sobre aspectos do mundo contemporâneos permanecem atuais e mais necessárias do que nunca.”
A história de Kapuscinski é muito rica, anota Domoslawski. O biógrafo conta que, ao começar a pesquisa, como não sabia qual era o seu destino, desfrutou de certa liberdade e, com isso, pôde fazer algumas descobertas incômodas sobre o autor. Tão incômodas que, quando diz que era amigo do jornalista-escritor, seus desafetos afirmam que, com um amigo como Domoslawski, ninguém precisa de inimigos. A viúva de Kapuscinski rompeu relações com o biógrafo, afirmando que o livro tem o objetivo de destruir a memória de um homem que permaneceu “honesto” e de esquerda. Teoricamente, Domoslawski estaria a serviço de uma nova direita — no que ninguém acredita.
Kapuscinski colaborou com os serviços de Inteligência do Partido Comunista Polonês. Domoslawski assegura que era uma colaboração ocasional e que “não prejudicou ninguém”. O jornalista acreditava no regime socialista. “Era um idealista, um ‘true believer’ (verdadeiro crente). A decepção absoluta [com o regime comunista] ocorreu, em 1981, quando o Partido Comunista reprimiu o movimento democrático desencadeado pelo Solidariedade” de Lech Walesa. “Tudo indica que Kapuscinski nunca foi um cínico.” Era um esquerdista convicto. “Considerava o socialismo real como um sistema melhor do que o capitalismo, ao menos em sua versão terceiro-mundista, que conheceu como repórter na África [Angola] e na América Latina [Cuba].”
Na guerra de Angola, da qual participaram militares cubanos enviados por Fidel Castro, Kapuscinski aparece como disparando armas, ou seja, participando da luta, e não apenas reportando as batalhas entre comunistas e anticomunistas. Domoslawski diz que, na Polônia pelo menos, não se discutia amiúde a questão dos limites da profissão do jornalista, conflitos de interesse e objetividade. “Durante a Guerra Fria, um repórter do campo socialista — ainda que não atirasse (o caso de Kapuscinski foi algo raro) — era, para o bem ou para o mal, ‘um soldado’ comprometido na frente ideológica.” O biógrafo não adota uma posição moralista e diz que, no final, “as decisões de Kapuscinski foram legítimas e compreensíveis porque é preciso considerar o contexto em que viveu e escreveu”. Se aponta os problemas, expondo as contradições do homem, Domoslawski não o condena. “Aprendemos muitas coisas graças às experiências de Kapuscinski.”
É possível admirar Kapuscinski depois de saber que “melhorava” ou “piorava” os fatos? “Sigo admirando-o — mais do que antes”, garante o biógrafo. “Vejo-o mais humano, menos monumental. Sinto uma profunda intimidade com seus medos, suas debilidades, frustrações e dilemas.” Domoslawski assinala que tem consciência de que “não se pode explicar totalmente outro ser humano”. Como deve ser lida, depois da biografia, a obra de Kapuscinski? “Alguns livros devem ser lidos como jornalísticos, outros como literatura. Kapuscinski sempre quis ser um escritor. E o foi tão grande que chegou a ser um firme candidato ao Prêmio Nobel de Literatura.”
Os repórteres Lawrence Weschler e Mark Danner, da “New Yorker”, também discutiram as “licenças poéticas” de Kapuscinski. Os profissionais da prestigiosa revista ressaltaram que, apesar das qualidades “artísticas e intelectuais” de sua obra, há problemas com a exposição dos fatos. “Creio que estes dois mestres da reportagem e do ensaio são conscientes de que as fronteiras entre os gêneros não são nítidas. Às vezes estão envoltas em ambiguidade”, observa Domoslawski. Não há quem, no meio jornalístico, não admire Kapuscinski. Entretanto, depois das revelações do biógrafo, todos ficam com o pé atrás. Ao mesmo tempo, todos admitem que se trata de um escritor consumado, com paixão pelos desvaliados e que não escreve com preconceitos contra os poderosos.
Danner cita o exemplo de uma novela na qual se pode identificar cada personagem (real), enquanto que em “O Imperador”, considerado um livro de não-ficção, “não se pode identificar ninguém”. “O Imperador” e “El Sha” (sobre o Irã), livros de Kapuscinski, “não são grandes obras porque não passariam pelo filtro de um ‘fact checking’ (verificação de dados)? Seguem sendo obras magníficas, ainda que não necessariamente jornalísticas, e isso apesar de que grande parte do material foi obtido em seu trabalho de repórter. Umas obras seguem sendo jornalísticas. Outras, como disse Albert Chillon, são inclassificáveis. Talvez Kapuscinski mereça uma estante específica, ou seja, dedicada exclusivamente aos seus livros.” Os livros “são tratados sobre os mecanismos do poder (‘O Imperador’) e sobre as revoluções (‘El Sha’). Eles são universais.” Domoslawski frisa que aprecia o que Juan Villoro escreveu sobre Kapuscinski “mentir” ou não: “Talvez muitos de nós ‘mentimos’ sobre ele? Talvez a época ‘mentiu’ a respeito dele e ele aceitou?” O biógrafo diz que, “do mesmo modo que o próprio Kapuscinski, talvez nós tenhamos criado uma lenda com a qual agora temos um problema, sobretudo quando nos perguntamos se cada obra sua pode ser um modelo jornalístico para as novas gerações de repórteres”.
Terminada a biografia, que provoca debates acesos na Europa, como Domoslawski resume quem era Kapuscinski? “Sobretudo, uma testemunha fundamental do século 20 e dos começos do século 21. Um escritor que deu voz àqueles que não a tinham.”

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