Ao analisar a economia mundial no imediato pós-guerra, o grande economista Raúl Prebisch cunhou a expressão centro-periferia. Apontava para uma divisão internacional do trabalho entre países produtores de matérias-primas e alimentos – a periferia – e países produtores e exportadores de manufaturas – o centro.
Tal divisão desfavorecia os países da periferia, pois a concorrência entre as exportações de produtos primários era maior, refletindo-se em preços mais desfavoráveis. Previa-se, também, que sua demanda cresceria abaixo da renda mundial. Por último, carentes de indústrias, esses países permaneceriam também carentes de bons empregos e dos frutos do progresso técnico.
Essa teoria simplificava muito a realidade, mas valeu como reparo ao teorema de que os ganhos do livre-comércio internacional seriam repartidos de forma equânime entre todas as nações. E deu certo substrato ideológico às políticas de desenvolvimento industrial.
Na “periferia”, o Brasil foi o país que levou a industrialização mais longe, embaralhando a dicotomia prebischiana. A partir dos anos 1980, porém, em razão de fatalidades da política macroeconômica e da transição mal feita para uma economia mais aberta, ingressamos numa fase de lento crescimento que já dura 30 anos.
Na última década, ganharam corpo mudanças impressionantes na economia internacional, com a ascensão da Índia e principalmente da China, países com 37% da população mundial, baixa renda por habitante, com projetos nacionais de desenvolvimento e pouco afeitos a bravatas. Um quarto do crescimento da economia mundial nesse período se deveu à China. A demanda por commodities saltou de patamar, empinando quantidades e preços, num movimento que parece contínuo: mais indústrias e mais infraestrutura exigindo matérias-primas, mais empregos e mais gente consumindo alimentos.
O centro chinês é muito peculiar. A economia é monitorada pelo Estado. O grau de discricionariedade da política econômica é altíssimo. O regime autoritário é eficiente para seus propósitos, e fortemente repressivo quando necessário. Para os de fora fica difícil explorar suas contradições internas. É um regime encarado com complacência por seus parceiros comerciais, incluindo o Brasil.
A caminhada chinesa em direção ao centro da economia mundial chegou a ser saudada como janela de independência da economia brasileira, que passaria a ser menos atrelada às economias desenvolvidas clássicas. A troco de nada, o deslumbramento do governo Lula com a China levou-o a reconhecê-la como “economia de mercado”, dando mais proteção às suas práticas desleais de comércio.
Mais independência? Ledo engano. Como disse Sérgio Amaral, a China é uma oportunidade e uma ameaça. Infelizmente, o Brasil escolheu a ameaça. A incapacidade de aproveitarmos boas condições de comércio para fortalecer a economia nacional está conduzindo o País, rapidamente, à condição de neoperiferia no concerto econômico mundial. “Neo” porque a nação está se desindustrializando, na volta à sua condição de economia primário-exportadora. A China, rumo ao centro, o Brasil, rumo à periferia. Num país continental como o nosso, isso envolve a renúncia a um futuro de suficientes e bons empregos.
As diferenças econômicas Brasil-China são marcantes. O yuan é das moedas mais desvalorizadas do mundo, o que aumenta muito a competitividade de sua economia. Nossa moeda vai exatamente no sentido contrário. Temos ainda a maior taxa real de juros do planeta e a maior carga tributária entre os países emergentes, o dobro da chinesa! A taxa de investimento da China é 2,5 vezes maior do que a brasileira: faltam poupança pública e capacidade para investir os recursos disponíveis e fazer parcerias público-privadas. Sobram tributos e falta uma taxa de câmbio decente para atrair mais investimentos privados.
As exportações chinesas estão varrendo boa parte da nossa indústria. Apenas 7% do que vendemos à China são produtos manufaturados, que representam 97% do que importamos de lá. Importações que vêm em boa medida substituir produção existente, menos competitiva por causa das políticas macroeconômicas, da fragilidade da defesa comercial e da situação calamitosa da nossa infraestrutura. Produzir no Brasil é tão caro que exportamos celulose para a China e começamos a importar o papel que ela produz. Exportamos minério de ferro, compramos aço. Cadê o famoso valor agregado?
A China também nos está deslocando de outros mercados. Dois terços das empresas exportadoras brasileiras perderam clientes para as chinesas no mercado externo, quase metade da indústria brasileira que concorre com a chinesa perdeu participação no mercado interno!
Além das vantagens apontadas, a China protege sua produção doméstica, faz escaladas tarifárias (soja), administra os investimentos estrangeiros no seu território, costuma subfaturar suas vendas ou utilizar países barriga de aluguel para reexportar seus produtos e escapar das esporádicas medidas de defesa comercial que o Brasil adota.
Outra dimensão da dependência brasileira é a rápida expansão dos investimentos diretos chineses voltados para as commodities de que a China precisa. São investimentos que obedecem à orientação do Estado chinês, que, por espantoso que possa parecer no Brasil, tem visão de longo prazo. Incorporaram até mesmo terras e riquezas naturais inexploradas, sob os olhares complacentes do extasiado governo Lula. Como os chineses são espertos, não lhes custará fazer uma concessão aqui ou ali em matéria de investimentos que envolvam maior valor agregado e alguma tecnologia nova. Mas só um pouquinho.
“Negócio da China”, antigamente expressava a possibilidade de alguma pechincha, um ganho extraordinário em cima dos chineses. Hoje, ao contrário, é negócio bom para eles. Nada contra, pois pensam no futuro e sabem defender seus interesses no presente. Nessa peleja, perdemos feio.
PS do Viomundo: A coluna trata de questões pertinentes e importantes.
Fonte: Estadão via Viomundo
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