Capa de "Steve Jobs", primeira biografia autorizada do ex-executivo-chefe da Apple, escrita por Walter Isaacson |
POR WALTER ISAACSON
A saga de Steve Jobs é o mito de criação da revolução digital em grande
escala: o início de um negócio na garagem de seus pais e sua
transformação na empresa mais valiosa do mundo. Embora não tenha
inventado muitas coisas de cabo a rabo, Jobs era um mestre em combinar
ideias, arte e tecnologia de uma maneira que por várias vezes inventou o
futuro. Ele projetou o Mac depois de apreciar o poder das interfaces
gráficas de uma forma que a Xerox não foi capaz de fazer, e criou o iPod
depois de compreender a alegria de ter mil músicas em seu bolso de uma
forma que a Sony, que tinha todos os ativos e a herança, jamais
conseguiu fazer. Alguns líderes promovem inovações porque têm uma boa
visão de conjunto. Outros o fazem dominando os detalhes. Jobs fez ambas
as coisas, incansavelmente.
Em consequência, revolucionou seis indústrias: computadores pessoais,
filmes de animação, música, telefones, tablets e publicação digital.
Pode-se até adicionar uma sétima: lojas de varejo, que Jobs não chegou a
revolucionar, mas repensou. Ao longo do caminho, ele não só produziu
produtos transformadores, mas também, em sua segunda tentativa, uma
empresa duradoura, dotada de seu DNA, que está cheia de designers
criativos e engenheiros ousados que podem levar adiante sua visão.
Jobs tornou-se assim o maior executivo de nossa época, aquele que com
maior certeza será lembrado daqui a um século. A história vai colocá-lo
no panteão, bem ao lado de Edison e Ford. Mais do que ninguém de seu
tempo, ele fez produtos que eram completamente inovadores, combinando o
poder da poesia com processadores. Com uma ferocidade que poderia tornar
o trabalho com ele tão perturbador quanto inspirador, também construiu o
que se tornou, ao menos por um período do mês passado, a empresa mais
valiosa do mundo. E foi capaz de infundir nela a sensibilidade para o
design, o perfeccionismo e a imaginação que fizeram da Apple, com toda
probabilidade, mesmo em décadas futuras, a empresa que melhor prospera
na intersecção entre arte e tecnologia.
No início do verão de 2004, recebi um telefonema de Jobs. Ele havia sido
intermitentemente amigável comigo ao longo dos anos, com rajadas
ocasionais de intensidade, em especial quando lançava um novo produto
que queria na capa da Time ou em programa da CNN, lugares em que eu
trabalhava. Mas agora que eu não estava mais em nenhum desses lugares,
não tinha notícias frequentes dele. Conversamos um pouco sobre o
Instituto Aspen, para o qual eu havia recentemente entrado, e o convidei
para falar no nosso campus de verão no Colorado. Ele disse que ficaria
feliz de ir, mas não para estar no palco. Na verdade, queria dar uma
caminhada comigo para que pudéssemos conversar.
Isso me pareceu um pouco estranho. Eu ainda não sabia que dar uma longa
caminhada era a sua forma preferida de ter uma conversa séria. No fim
das contas, ele queria que eu escrevesse sua biografia. Eu havia
publicado recentemente uma de Benjamin Franklin e estava escrevendo
outra sobre Albert Einstein, e minha reação inicial foi perguntar, meio
de brincadeira, se ele se considerava o sucessor natural naquela
sequência. Supondo que ele estava no meio de uma carreira oscilante, que
ainda tinha muitos altos e baixos pela frente, eu hesitei. Não agora,
eu disse. Talvez em uma década ou duas, quando você se aposentar.
Mas depois me dei conta de que ele havia me chamado logo antes de ser
operado de câncer pela primeira vez. Enquanto eu o observava lutar
contra a doença, com uma intensidade incrível, combinada com um
espantoso romantismo emocional, passei a achá-lo profundamente atraente,
e percebi quão profundamente sua personalidade estava entranhada nos
produtos que ele criava. Suas paixões, o perfeccionismo, os demônios, os
desejos, o talento artístico, o talento diabólico e a obsessão pelo
controle estavam integralmente ligados a sua abordagem do negócio, e
decidi então tentar escrever sua história como estudo de caso de
criatividade.
A teoria do campo unificado que une a personalidade de Jobs e os
produtos começa com sua característica mais saliente, a intensidade. Ela
era evidente já nos tempos de escola secundária. Naquela época, ele já
começara com as experiências que faria ao longo de toda a sua vida com
dietas compulsivas - em geral, somente de frutas e legumes - de tal modo
que era tão magro e firme quanto um whippet. Ele aprendeu a olhar fixo
para as pessoas e aperfeiçoou longos silêncios pontuados por rajadas em
staccato de fala rápida.
Essa intensidade estimulou uma visão binária do mundo. Os colegas se
referiam à dicotomia herói/cabeça de bagre; você era um ou o outro, às
vezes no mesmo dia. O mesmo valia para produtos, ideias, até para a
comida: As coisas ou eram "a melhor coisa do mundo" ou uma droga. Era
capaz de provar dois abacates, indistinguíveis para os mortais comuns, e
declarar que um deles era o melhor já colhido e o outro, intragável.
Julgava-se um artista, o que incutiu nele a paixão por design. No início
da década de 1980, quando estava construindo o primeiro Macintosh, não
parava de exigir que o projeto fosse mais "amigável", um conceito
estranho aos engenheiros de hardware da época. Sua solução foi fazer o
Mac evocar um rosto humano, e chegou a manter a faixa acima da tela fina
para que não fosse uma cara de Neanderthal.
Jobs compreendia intuitivamente os sinais que um projeto adequado emite.
Quando ele e seu companheiro de projeto Jony Ive construíram o primeiro
iMac, em 1998, Ive decidiu que o aparelho deveria ter uma alça situada
na parte superior. Era uma coisa mais brincalhona e semiótica do que
funcional. Tratava-se de um computador de mesa. Não muitas pessoas iriam
carregá-lo para cima e para baixo. Mas a alça emitia um sinal de que
você não precisava ter medo da máquina, que podia tocá-la e ela lhe
obedeceria. Os engenheiros objetaram que aquilo aumentaria o custo, mas
Jobs ordenou que fizessem daquele jeito.
Sua busca pela perfeição levou à compulsão de que a Apple tivesse um
controle de ponta a ponta de todos os seus produtos. A maioria dos
hackers e aficionados gostava de personalizar, modificar e conectar
coisas diferentes em seus computadores. Para Jobs, tratava-se de uma
ameaça para uma experiência de usuário inconsútil de ponta a ponta. Seu
parceiro inicial Steve Wozniak, um hacker nato, discordava. Ele queria
incluir oito slots no Apple II para que os usuários pudessem inserir as
placas de circuito menores e os periféricos que quisessem. Jobs
concordou com relutância. Mas, alguns anos mais tarde, quando construiu o
Macintosh, ele o fez à sua maneira. Não havia slots extras ou portas, e
chegou mesmo a usar parafusos especiais para que os aficionados não
pudessem abri-lo e modificá-lo.
Seu instinto de controle significava que ele tinha urticária, ou algo
pior, ao contemplar o excelente software da Apple rodando em hardwares
ruins de outras empresas, e também era alérgico à ideia de aplicativos
ou conteúdos não aprovados poluindo a perfeição de um dispositivo da
Apple. Essa capacidade de integrar hardware, software e conteúdo em um
sistema unificado lhe possibilitava impor a simplicidade. O astrônomo
Johannes Kepler, declarou que "a natureza ama a simplicidade e a
unidade". O mesmo acontecia com Steve Jobs.
Isso o levou a decretar que o sistema operacional do Macintosh não
estaria disponível para o hardware de qualquer outra empresa. A
Microsoft seguiu a estratégia oposta, permitindo que seu sistema
operacional Windows fosse promiscuamente licenciado. Isso não produziu
os computadores mais elegantes, mas levou a Microsoft a dominar o mundo
dos sistemas operacionais. Depois que a fatia de mercado da Apple caiu
para menos de 5%, a estratégia da Microsoft foi declarada vencedora no
reino do computador pessoal.
A longo prazo, no entanto, o modelo de Jobs mostrou ter algumas
vantagens. Sua insistência na integração de ponta a ponta deu à Apple,
no início do século XXI, uma vantagem no desenvolvimento de uma
estratégia de hub digital, o que permitiu que seu computador de mesa se
ligasse perfeitamente a uma variedade de dispositivos portáteis e
gerenciasse seu conteúdo digital. O iPod, por exemplo, fazia parte de um
sistema fechado e totalmente integrado. Para usá-lo, era preciso
utilizar o software iTunes da Apple e baixar conteúdos da iTunes Store.
Em consequência, o iPod, tal como o iPhone e o iPad que vieram depois,
eram um deleite elegante, em contraste com os canhestros produtos rivais
que não ofereciam uma experiência perfeita de ponta a ponta.
Para Jobs, a crença em uma abordagem integrada era uma questão de
retidão. "Não fazemos essas coisas porque somos malucos por controle",
explicou. "Nós as fazemos porque queremos fazer grandes produtos, porque
nos preocupamos com o usuário e porque gostamos de assumir a
responsabilidade por toda a experiência, ao invés fabricar a porcaria
que outros fazem." Ele também acreditava que estava prestando um serviço
às pessoas. "Elas estão ocupadas fazendo o que sabem fazer melhor e
querem que façamos o que fazemos melhor. Suas vidas estão ocupadíssimas;
elas têm mais coisas a fazer do que pensar em como integrar seus
computadores e dispositivos.".
Em um mundo cheio de dispositivos inúteis, software pesados, mensagens
de erro inescrutáveis e interfaces irritantes, a insistência de Jobs em
uma abordagem integrada levou à criação de produtos surpreendentes,
caracterizados por uma experiência de usuário deliciosa. Usar um produto
da Apple podia ser tão sublime quanto caminhar em um dos jardins zen de
Quioto que Jobs amava, e nenhuma dessas experiências foi criada pela
adoração no altar da abertura ou deixando mil flores florescem. Às vezes
é bom estar nas mãos de um maníaco por controle.
Há algumas semanas, visitei Jobs pela última vez em sua casa de Palo
Alto. Ele se mudara para um quarto no andar de baixo, porque estava
fraco demais para subir e descer escadas, e estava encolhido com um
pouco de dor, mas sua mente ainda estava afiada e seu humor vibrante.
Conversamos sobre sua infância, e ele me deu algumas fotos de seu pai e
da família para usar em minha biografia. Como escritor, estou acostumado
a manter distanciamento, mas fui atingido por uma onda de tristeza
quando tentei dizer adeus. A fim de disfarçar minha emoção, fiz a
pergunta que ainda me deixava perplexo. Por que ele se mostrara tão
disposto, durante quase cinquenta entrevistas e conversas ao longo de
dois anos, a se abrir tanto para um livro, quando costumava ser
geralmente tão discreto? "Eu queria que meus filhos me conhecessem",
disse ele. "Eu nem sempre estava presente, e queria que eles soubessem o
porquê disso e entendessem o que fiz."
Fonte: Folha