terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Réplica: Senna não é Pelé (Ainda bem!)

publicado em  por Marcel Pilatti



Senna se tornou tudo o que se tornou graças ao seu talento e suas conquistas. Reduzi-lo a mais um “produto da ‘Rede Globo’ e do marketing” é delegar a Galvão Bueno um poder sobrenatural que tornaria Adolf Hitler um mero aprendiz da oratória
Ayrton Senna
Todos os mitos — sejam eles religiosos, culturais, esportivos, históricos ou de outra ordem — podem e devem ser questionados. É preciso esmiuçá-los, investigá-los, analisá-los, para que se chegue à razão da mitificação. Porém, ao mesmo tempo em que se fazem questionamentos ao objeto mitificado, não se pode negá-lo: fazer isso seria como negar o próprio ser humano e suas evoluções. 
Guardadas as devidas proporções (tanto de alcance quanto de permanência), no Brasil existem poucas personalidades que merecem essa alcunha: Pelé, Roberto Carlos, Ayrton Senna, Silvio Santos e Lula compõe o grupo daqueles que foram além dos seus limites e se tornaram uma espécie de inconsciente coletivo. 
E o que fez mitificar todos esses nomes? Uma conjunção de pelo menos três fatores: 1) o carisma natural, o dom de comunicação e expressão de cada um; 2) a boa imagem pública cultivada — até mesmo Lula, nos grandes escândalos, sempre escapou 'ileso' —, obviamente impulsionada pela televisão; 3) os êxitos e as capacidades em suas áreas profissionais. 
É possível afirmar que os dois primeiros tópicos não teriam qualquer efeito, e talvez nem existissem, não fosse o último: pessoas públicas só alcançam tão elevado patamar de popularidade e admiração se realmente forem além daquilo que se espera (e se pode esperar) delas. O que não, necessariamente, os torna seres acima de qualquer suspeita, inquestionavelmente superiores a todos os outros que tenham se aventurado na mesma área. 
Pensando no esporte, é indiscutível que Pelé e Senna foram e são os dois maiores nomes brasileiros, por mais que se considere o peso de Garrincha, Piquet, Ronaldo ou Emerson, ou que se faça louvor a gente do porte de Gustavo Kuerten, Adhemar Ferreira da Silva e Oscar Schmidt. Senna e Pelé se tornaram ícones do esporte brasileiro e verdadeiras referências mundiais do país. 
Por isso, é normal que aconteçam exageros em torno de ambos, não somente com relação aos profissionais mas também para com os seres humanos. 
Ademir Luiz defendeu muito bem sua tese no texto “Senna não é Pelé”, em que aponta a dificuldade de se criticar Ayrton Senna em terras brasileiras: “Brasileiro faz piada com tudo (...) A grande e, talvez, única exceção é Senna, que foi elevado a condição de santo secular por várias gerações de fãs”, afirmou. Segundo Luiz, “(seus fãs) Não admitem comparar a grandeza moral e profissional do ídolo com nada ou ninguém.” 
É possível dizer que as ponderações de AL a Senna tenham seu fundo de verdade, mas Luiz incorreu de dois erros fundamentais: 1) não buscou, em nenhum momento, “compreender” o mito Senna; 2) mitificou ainda mais, e blindou de questionamentos, o mito Pelé. 
Basicamente, as críticas feitas por AL à “intocabilidade” de Senna se tornaram elogios a Edson Arantes do Nascimento, quando ele diz que “a diferença entre ele [Pelé] e seus 'pretensos' concorrentes é oceânica”, ou quando afirma que após a aposentadoria do genial camisa 10 ficou “só restando um 'cavalheiro' chamado Edson”. 
Nem uma coisa nem outra: a diferença entre Pelé e os outros gênios do futebol não foi assim risível, e o lado humano do craque está distante de ser um exemplo de retidão. 
Fosse Pelé algo extremamente superior a todos os outros jogadores, ele seria o primeiro e não apenas o quinto maior artilheiro da história das Copas; fosse ele algo incomparável, não teria menos gols em partidas oficiais do que Josef Bican e Romário; fosse ele um ser supremo, não figuraria apenas na décima posição dentre os maiores artilheiros da história do Brasileirão (somando a unificação!); fosse ele tão “maior”, não teria ficado quase 40% (513) de suas partidas (1375) sem marcar gols;  e fosse ele inquestionável, o Santos não teria vencido o mundial de 1963 e a Seleção a Copa de 1962 sem contar com ele. 
E caso Edson fosse mesmo 'o' cavalheiro, não teria quebrado a perna de dois jogadores em partidas; teria reconhecido sua filha, Sandra; não teria relacionamentos fora do seu casamento, inclusive “comprando o silêncio” de uma de suas amantes; não teria se envolvido com desvios de dinheiro na Unicef ou no Flamengo; e não seria lembrado como um dos piores ministros dos esportes que o Brasil já teve. 
Mas o reconhecimento daqueles que testemunharam (e, de certa forma, desfrutaram) o sucesso do Rei é uma das coisas que não podemos questionar. Nesse ponto, aliás, Senna e Pelé são equivalentes, pois são aclamados por (ex-)jogadores/pilotos, (ex-)técnicos/chefes de equipe, por jornalistas especializados e por fãs de Fórmula 1/futebol. 
Como dito anteriormente, Senna é um 'mito brasileiro'. Mas é um erro pensar que a idolatria e a paixão pelo piloto é algo específico, local: assim como Diego Maradona se tornou “Dío” na Itália antes de ser aclamado “Diós” na Argentina, a fama de Senna é enorme no Japão e em diversos países europeus e latino-americanos. E o mais importante: tal reconhecimento veio antes de sua morte – ainda que com o evento, cresceu e permaneceu. 
Ayrton Senna tem quase duas dezenas de biografias a seu respeito — número maior que os livros feitos sobre Pelé ou acerca de outros pilotos —, lançadas por autores brasileiros (Ernesto Rodrigues, Ignacio Loyola Brandão, Daniel Piza, Lemyr Martins), ingleses (Keith Button, Cristopher Hilton), alemães (Karin Sturm), italianos (Paolo D'Alessio), franceses (Paul-Henri Cahier) entre outros. Importante: O mais famoso desses, “A Face do Gênio”, foi escrito pelo inglês Hilton em 1990, ou seja: quando Senna tinha 30 anos e era 'apenas' bi-campeão mundial.
 Levando-se em consideração as produções digitais, também temos um número considerável: o recente documentário “Senna” é a 5ª homenagem em video ao piloto: “Racing is in my blood” (o primeiro destes, realizado no supracitado ano de 1990), “A Star named Senna”, “The Official Tribute” e “The Will to Win” vieram antes. Isso sem contar o musical “A tribute to Ayrton Senna”, que conta com artistas do nível de Queen, Pink Floyd e Phil Collins. Como se pode notar pelos títulos, nenhuma das produções é brasileira. Novamente, é um número superior ao que já se criou sobre Pelé. 
Se formos pensar em homenagens na internet, perderíamos a conta. Mas alguns fatores chamam atenção: Senna tem dedicada a si uma página em russo  e dentre os três documentários mais acessados no YouTube estão um da BBC, um da “National Geographic” e outro de um canal de TV grego. Não custa lembrar que jamais houve corridas de F-1 na Grécia, e o primeiro GP na Rússia ainda está por acontecer. 
Falar sobre escolhas e votações populares sobre o maior piloto da história é chover no molhado, ainda mais  pensando em votações feitas no Brasil. Mas é sintomático que Senna tenha sido 'eleito' o piloto do século XX no ano de 2001 — quando Schumacher e Ferrari estavam no ápice —, em votação promovida pela conceituadíssima revista italiana AutoSprint com seus leitores. Ou então que tenha obtido quase 45,2% dos votos de leitores do site alemão MotorSport-total, em enquete promovida no ano de 2010, quando Schumacher (39,1%) retornou às pistas. 
Julgando que opiniões de fãs, inda que oriundas de locais diferentes, são sempre suspeitas, podemos pensar nas homenagens realizadas no mundo do automobilismo. No Japão, durante o GP de Suzuka de 1994, foi criado o “Memorial Ayrton Senna”; na Inglaterra, no autódromo de Donington (o mesmo onde Senna protagonizou a antológica primeira volta em 1993), há uma estátua do piloto ao lado de Juan Manuel Fangio, considerados “os dois maiores da história” segundo inscrição; há também monumentos de Ayrton em autódromos de Portugal e Itália. 
Senna, Prost, Mansell e Piquet
No entanto, o mais importante desses reconhecimentos talvez tenha sido a enquete promovida pela revista inglesa “AutoSport”, considerada a principal publicação de automobilismo no mundo. A eleição (que colocou Senna em primeiro, seguido por Schumacher, Fangio, Prost e Clark), ocorrida no final de 2009, foi feita através da escolha de nada menos que 217 pilotos e ex-pilotos da F-1. Participaram da enquete desde José Froilán Gonzales (argentino colega de Fangio) até Jaime Alguersuari (o mais jovem piloto a disputar um GP), passando por Alan Jones, Michael Schumacher e Jenson Button. 
Como funcionou: cada um dos 'eleitores' apontava 10 pilotos, em ordem, e a pontuação ia de 10 a 1, respectivamente. Senna foi o que mais pontos somou. E apenas a título de curiosidade, no site da revista é possível dar sua opinião sobre a posição de cada um dos pilotos. Na página que fala de Senna em 1º, 72% de 10743 votos dizem que ele devia mesmo ficar naquela posição. Já na de Schumacher, 52% dos 7846 votos indicam que o alemão merecia alguma posição abaixo da conquistada. 
Algo muito parecido já tinha acontecido 5 anos antes: em 2004, ano do 7º título de Schumacher, a também inglesa “F1 Racing” consultou 77 personalidades ligadas ao automobilismo, entre pilotos, chefes de equipe e engenheiros, e solicitou que cada um apontasse 25 pilotos na sua lista dos melhores da história. Resultado? Senna em primeiro, somando 1.768 pontos, seguido por Fangio (1.720) e Schumacher (1.689). Depois apareceram Clark e Prost, respectivamente. Como visto, os 5 pilotos seriam os mesmos em 2009. Só o primeiro não mudou. 
Se somente um dos dados mencionados acima fossem dirigidos a um personagem, já seria algo digno de nota. Mas todos se referem a um mesmo esportista. Isso sim, como disse Ademir em seu texto, “merece ser estudado com profundidade pela academia”.
 Buscar depoimentos isolados será sempre uma via de duas mãos, pois é possível, mesmo em se tratando de Pelé, encontrar opiniões que destoem da “banda dos contentes”. Por exemplo, Coutinho, parceiro do 'Rei do futebol' naquela que foi uma das maiores duplas de ataque da história, declarou em entrevista à “PLACAR” nos anos 80 que “Se soubesse quem era Pelé, ele nunca teria feito 1000 gols. O homem que conheci no Santos não é amigo de ninguém, só pensa em si mesmo”. 
O inglês Bobby Charlton, campeão mundial de 1966 e um dos maiores ídolos do Manchester United, disse que “Di Stefano foi o melhor de todos os tempos”. Para o técnico Cezar Luís Menotti, campeão mundial de 1978, “Alfredo Di Stefano foi o rei dos reis. Depois vem, na ordem, Pelé, Cruyff e Maradona”. Para Helenio Herrera, lendário treinador da Inter de Milão nos anos 60, “Di Stéfano foi melhor ainda que Pelé. Era um grande defensor, um grande meio campo e o mais perigoso homem de ataque que já surgiu”. 
Essas são algumas opiniões — de bastante respeito — que não sacramentam Pelé 'o melhor'. Mas, evocando Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. Obviamente, para cada um que aponta 'Di Stefano' ou outro como maior da história, há no mínimo 5 grandes nomes que decretam Pelé o número 1 de sempre: Cruyff, Puskas, Beckenbauer, Rivelino e Fontaine, para ficar nos mais ilustres, deram-no tal distinção. 
E é assim também na Fórmula 1: Se Niki Lauda passou a colocar Schumacher no posto de maior piloto, ou se o brasileiro Chico Rosa julgou Piquet e Schumy mais completos, há número expressamente maior de opiniões que veem Senna nesse patamar. 
No especial de 15 anos da morte do brasileiro do programa britânico 'Top Gear', Lewis Hamilton, Jarno Trulli, Mark Webber, Felipe Massa, Rubens Barrichello, Fernando Alonso, David Coulthard, Mika Hakkinen e Nigel Mansell disseram que “colocariam Senna como o número 1”. O argentino Juan Manuel Fangio, após a morte de Senna, escreveu emocionado depoimento dizendo que Ayrton “foi o piloto mais seguro que viu em sua vida”, e que o brasileiro era “o mais digno de seus sucessores”. Clay Regazzoni, famoso piloto dos anos 70, disse que “Senna foi a oitava maravilha do mundo”. E Emerson Fittipaldi não tiubeou: “Senna foi o maior piloto de todos os tempos”. 
Senna e Fangio
Lee Gaug, técnico-responsável da Goodyear pelo fornecimento de pneus para competição e ex-engenheiro da Força Aérea dos EUA declarou: “Trabalhei com diversos pilotos tremendamente rápidos, mas que não conseguiam detalhar nada do que haviam feito após os testes. Outros, conseguiam trabalhar no desenvolvimento dos pneus, mas não eram rápidos o suficiente. Ayrton era diferente. Ele tinha uma incrível habilidade para lembrar de tudo que acontecia na pista, mesmo quando estava absolutamente concentrado em marcar tempo. Ele podia separar os dois processos na sua mente. Fenomenal”. 
Martin Brundle, rival de Senna na Fórmula 3 e na Fórmula 1, definiu o brasileiro: “Senna guiava de forma emocional e foi o piloto mais talentoso que eu já vi, ou corri contra” e afirmou que o brasileiro “tinha um sexto sentido para descobrir aonde está o grip.”. Para Bernie Ecclestone, o chefão da F-1, “o que se pode dizer é que Schumacher certamente não teria 7 títulos... Ele talvez vencesse dois ou três, enquanto Senna levaria uns quatro”. 
Outro depoimento interessante é o de Jeremy Clarkson, jornalista britânico. Ele afirmou que "nunca foi um fã de Ayrton Senna" e que sempre "considerou que Gilles Villeneuve fosse o melhor piloto da história". “Porém”, revela Clarkson, "ao (re)ver todas essas filmagens de testes e corridas antigas (para o especial do 'Top Gear')", chegou a uma conclusão: "Gilles Villeneuve foi espetacular numa série de ocasiões; mas Senna era espetacular a cada vez que guiava um carro de corrida".  
Gerhard Berger, que correu contra Senna entre 1984 e 1994, e foi companheiro de equipe do brasileiro entre 1990 e 1992, falou que “Ayrton era o piloto mais perfeito e mais dedicado que já existiu. Um conjunto de percepção, concentração, força e velocidade, aliado a um talento para dirigir verdadeiramente abençoado, e à capacidade de não cometer erros 'nos momentos decisivos'.” E ainda ponderou: “Alguém que não o conhecesse tão bem ou que não tivesse trabalhado com ele provavelmente não acreditaria”. 
Seria possível escrever um texto apenas citando frases de personalidades ligadas à F-1 sobre Ayrton Senna, mas provavelmente o mais definitivo depoimento seja o de Gordon Murray, engenheiro que formou a lendária parceria com Nelson Piquet na Brabham (1979-85) e que dividiu os boxes com Ayrton Senna e Alain Prost na McLaren (1988-89), e afirmou que Piquet era “fenomenal, de verdade”, dizendo que ele “foi aquele que realmente se integrou à equipe da melhor forma”. 
Nas palavras do sul-africano, “psicologicamente Ayrton tinha o golpe mais forte, de verdade, porque ele era um pensador muito profundo, o Ayrton. E psicologicamente ele iria começar o treino classificatório ou a corrida num nível mental superior(...) 
Ele era rápido, mas eu penso que o jeito de descrevê-lo muito melhor é dizendo que ele foi o piloto mais completo. Você pode ser rápido, e ainda assim não vencer muitas corridas. Porque você não é capaz de interpretar a engenharia, você tende a cometer erros, por exemplo... Ou você é rápido alguns dias e não tão rápido nos outros dias... Eu trabalhei com muitos pilotos que só são rápidos quando tudo está perfeito. E se algo não estiver como eles gostam, eles não conseguem render. E Ayrton nunca era assim. Ele era rápido sob praticamente quaisquer circunstâncias, porque ele pensava sobre tudo, ele se adaptava às circunstâncias, ou trabalhava com o time para melhorar o carro. 
(...) Ele se integrava bem com o time, seu feedback aos engenheiros era muito bom, e ele tinha muito cuidado com a mecânica dos carros. Muito bom em relação controlar o desgaste de pneus, carro, motor e caixa de câmbio. E isso é o que eu chamo de um piloto completo. E ele era rápido também, é claro. Ele foi certamente o piloto mais completo com o qual eu trabalhei, e essa realmente foi a razão pela qual ele obteve tanto sucesso”. 
Senna se tornou tudo o que se tornou graças ao seu talento e suas conquistas. Reduzi-lo a mais um “produto da ‘Rede Globo’ e do marketing” é delegar a Galvão Bueno um poder sobrenatural que tornaria Adolf Hitler um mero aprendiz da oratória. Ou então afirmar que uma emissora de TV brasileira tem poder e influência maiores que o governo dos EUA. 
Enfim, negar a força e a importância de Senna faz lembrar a célebre frase de Abraham Lincoln, ao chegar na cidade de Gettysburg: “É possível enganar parte do povo, todo tempo; é possível enganar parte do tempo, todo o povo; jamais se enganará todo o povo, todo o tempo."
Fonte: Revista Bula

Meu comentário

Embora eu tenha gostado bastante do texto e da quantidade de citações, acho que o texto em algum momento se apegou a detalhes da vida de Pelé que talvez não precisassem ser citados. Precisamos avaliar um ídolo do esporte levando em consideração somente o esporte que alçou aquele esportista ao status de ídolo.
Considero tanto Pelé quanto Senna dois grandes exemplo de genialidade. Foram, e são, os maiores gênios dos respectivos esportes aos quais dedicaram a vida.

Leiam esse maravilhoso texto e digam o que pensam sobre o assunto.

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