terça-feira, 11 de janeiro de 2011

“A Itália é o laboratório do totalitarismo moderno”


Crescem a xenofobia e o racismo e a debilidade cultural da Itália se expande pelo continente europeu. Trono e altar se aliaram de novo, agora de maneira distinta. Hoje assistimos a uma fusão entre mercado, fé e política, que tratam de organizar nossas vidas, manipulando o direito. Na Itália, a corrupção não só não é perseguida, como está protegida pela lei. Aboliram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Hoje o que manda é o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade se decompôs, o país está se desfazendo. A política faz uso ostensivo da força, e o direito se esfarela. A análise é de Stefano Rodotà, professor de Direito Civil na Universidade de La Sapienza, Roma.
Expoente do laicismo, da democracia e do senso comum, Stefano Rodotà é um homem deliciosamente amável. Conhecedor do direito, comprometido desde há muito, e herdeiro do ativismo de Pasolini, é talvez um dos últimos humanistas europeus e um dos poucos intelectuais de referência que restam nesta Itália “triste e corrompida, que só olha o próprio umbigo e parece cada vez mais um apêndice do Vaticano, agora que se aproxima dos 150 anos da unidade do país”. Miguel Mora o entrevistou para o El País.


Professor emérito de Direito Civil na Universidade de La Sapienza de Roma, Rodotà, nascido em Cosenza há 73 anos, escreve livros e artigos, assiste a Congressos, dirige o Festival de Direito de Piacenza, promove manifestos e milita por um número sem fim de causas, da liberdade de imprensa à ética pública e à eutanásia.



Eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano em 1979, viveu a década de convulsão do final da Primeira República no Parlamento e depois foi o primeiro presidente do Partido Democrátido da Esquerda (PDS), fundado em 1991 por Achille Occhetto, a partir das cinzas do PCI. Só um ano depois, talvez profetizando o que se avizinhava, abandonou a política.



Hoje ensina em universidades de todo o mundo, como especialista em filosofía do direito e coautor da Carta Fundamental de Direitos da União Européia, a “tábua” de medir liberdades individuais, novos direitos, qualidade democrática e abuso de poder. Seus textos sobre a relação entre direito e privacidade, tecnologia, trabalho, informação e religião são considerados clássicos. 



Agora, Trotta acaba de traduzir seu livro A Vida e as Regras: Entre o direito e o Não Direito, um ensaio de 2006 ampliado em 2009, no qual Rodotà reestabelece os limites do direito e reivindica um novo, “mais sóbrio e respeitoso com as múltiplas e novas formas de que a vida humana adquiriu”.



O professor denuncia a tirania que os novos papas da lei tratam de impor aos cidadãos: a casta de “notáveis” que formam juristas e advogados, os grandes despachos internacionais que “criam as regras do direito global a mando das multinacionais”, os “legisladores invisíveis que sequestram o instrumento jurídico, transformando uma mediação técnica em uma atitude sacerdotal”.



O livro traça uma crítica pós-marxista da selva de ataduras legais que freiam as liberdades trazidas pelas inovações técnicas e científicas. Partindo de Montaigne ("a vida é um movimento desigual, irregular e multiforme"), Rodotá explica como o "evangelho do mercado", o poder político e a religião coproduziram "uma mercantilização do direito que abre caminho até para negociar os direitos fundamentais”, em caso de assuntos tão díspares, como a imigração, as técnicas de fertilização ou os avanços da biologia.



Para Rodotà, essa lógica mercantil e invasiva é “radicalmente contraditória com a centralidade da liberdade e da dignidade”, e a privatização da legalidade num mundo global cria enormes desigualdades, paraísos e infernos, “lugares onde se criam novos direitos e outros onde o legislador pretende adonar-se da vida das pessoas”.



“O paradoxo é que esta disparidade, que em teoria ajuda a ampliar a consciência da igualdade pelo mundo, pode consagrar uma nova cidadania censitária”, explica. “Se se legisla sobre os genes, o corpo, a dor, a vida, o descanso ou o trabalho, aplicando a repressão, a arrogância e a técnica empresarial do deslocamento, as liberdades se convertem em mercadorias e somente aqueles que possam se permitir a pagar podem ter acesso a elas”.



Rodotà cita por exemplo as leis sobre os matrimônios homossessexuais ou a reprodução assistida, “que na Itália criaram um fluxo de turistas do direito oriundos de países como a Espanha e outros menos certos, como Eslovênia ou Albânia". E, no lado oposto, “os paraísos fiscais e os países que menos respeitam os direitos do trabalho ou a legislação ambiental, dessa forma capturando empresas e milionários".



A grande diretriz, afirma nesta entrevista, é “sair do direito e regressar à vida”. Ou, como afirma no prólogo do livro o profesor José Luis Piñar Mañas, "vincular vida e direito, direito e pessoa, pessoa e liberdade, liberdade e dignidade; pôr o direito a serviço do ser humano, e não do poder”.



A ENTREVISTA



Não é paradoxal que um jurista alerte contra os excessos do direito?



Rodotà: Bom, o maior paradoxo é que o direito, que deve ser apenas uma mediação sóbria e sensata, converta-se numa arma prepotente e pretenda apropriar-se da vida das pessoas. Esta nova tendência está muito ligada às inovações científicas e tecnológicas. Antes, nascíamos de uma só maneira; desde que Robert Edwards, o reluzente prêmio Nobel inventou o bebê de proveta, as regras do jogo mudaram e a lei natural não é governada apenas pela procriação natural. Há outras oportunidades de escolher e surge o problema: o direito deve atuar nesta área? Até que ponto? Às vezes, sua pretensão é meter a ciência numa jaula, opor o direito a direitos, usar o direito para negar liberdades. Isso é lícito? Às vezes pode parecer que sim, é, como no caso da clonagem.



E outras vezes?



Rodotà: Ao meu juízo, o direito deve intervir, mas sem arrogância, sem prepotência, sem abusar, deixando as pessoas decidirem de forma livre e consciente. O caso de Eluana Englaro é um exemplo palpável do uso prepotente da lei, e além disso, do atraso cultural e político italianos. O poder e a igreja decidiram, contra o que afirma a Constituição sobre o direito inalienável das pessoas a sua dignidade e a sua saúde, que era preciso atuar para limitar a dignidade dessa mulher sem vida cerebral e o direito de seu pai a decidir por ela. O problema não é só a forçação de barra autoritária do poder político, mas o desafio insensato à norma soberana, a Constituição, e a colaboração da igreja nesse ataque.



A Igreja também odeia as células tronco. Mas a fecundação assistida foi proibida na Itália num referendum.



Rodotà: Algumas inovações científicas põem em jogo a antropologia profunda do ser humano. O uso e o descarte de varios embriões nas técnicas de fertilidade é uma delas. O direito deve acompanhar essas mudanças, não bloqueá-las. Os cientistas pedem regras para saber se seus avanços são moral ou socialmente aceitáveis. Um uso prepotente da lei limita suas investigações, nega o seu avanço e, ao fazê-lo, apodera-se de nossas vidas, porque nos nega todo direito, ou pior ainda, nega-o só a alguns. Os ricos italianos podem ir para a Espanha fazer fertilização in vitro, os pobres, não. Isso produz uma cidadania censitária e destrói o estado social. A vida vem antes da política e do direito.



A Itália atual está submetida ao fundamentalismo católico?



Rodotà: A Itália é um laboratório do totalitarismo moderno. O poder, ao abusar do direito, privatizá-lo e tratá-lo como mercadoria, dá asas ao fundamentalismo político e religioso, e isso mina a democracia. Os bispos italianos não admitem testamento biológico; os alemães propuseram um texto mais avançado que a esquerda italiana. Quando se cumpriu um ano da morte de Eluana, Berlusconi escreveu uma carta às monjas que cuidaram dela, dizendo que estava muito triste por não ter podido salvar-lhe a vida. Admitiu publicamente que o poder havia tratado de adonar-se de sua vida. Agora, acaba de apresentar um Plano pela Vida à igreja. Com o objetivo de angariar seu apoio para seguir governando, Berlusconi vendeu o Estado de direito ao Vaticano, por quatro tostões.



E os homossexuais seguem sem direitos. E os laicos cada vez apitam menos.



Rodotà: O Tribunal Constitucional já disse que se deve reconhecer o casamento gay. A Carta de Direitos da UE também é muito clara. Necessitamos de um direito amável, não de um direito que negue os direitos. A religião não pode domar a liberdade. A Constituição de 1948, artigo 32, diz que a lei não poderá, em caso algum, violar os limites impostos pelo respeito à vida humana. Ese artigo foi feito pensando nos experimentos nazis, sob a influência da comoção causada pelos processos dos médicos, em Nuremberg! E foi Aldo Moro que o fez, um político católico!



Você já pensou alguma vez em cerrar fileiras com a Democracia Cristã?



Rodotà: Aqueles políticos tinham outra envergadura cultural. As discussões parlamentares entre a DC [Democracia Cristã]e o PCI[Partido Comunista Italiano] eram de um nível impressionante. Com a DC governando, fizeram-se as leis do aborto e do divórcio. Sabiam que a sociedade e o feminismo as exigiam e entenderam que não admiti-lo causaria danos a sua credibilidade política. Muitos eram verdadeiramente laicos. Tinham mais sentido de medida e mais respeito. Hoje estamos no turismo para poder nascer e para poder morrer; as pessoas reservam quartos em hospitais suíços para morrerem com dignidade. É possível que um Estado democrático obrigue os seus cidadãos a pedir asilo político para morrer? O direito deve governar esses conflitos, não dar-lhes alento.



Rosa Luxemburgo dizia que atrás de cada dogma havia um negócio para cuidar.



Rodotà: Não tenho dúvida de que a saúde privada influi nas posições do Vaticano. Desde o Concílio tudo piorou, e hoje a Itália está sendo governada por movimentos como o Comunhão e Liberação, que fazem negócios fabulosos com a ajuda e a anuência do governo. A má política sempre é filha da má cultura. A degradação cultural é a chave do problema. Espero que o regime político de Berlusconi acabe o quanto antes possível, mas nos recuperarmos deste deserto cultural levará décadas. O uso da televisão, não só o partidário, mas o embrutecedor, a degeneração da linguagem…Tudo isso é menor. A degradação foi muito além do perímetro da centro direita, e vemos em todas as partes atitudes espetaculares como as de Berlusconi.



Tem gente pondo em discussão até os direitos sindicais.



Rodotà: O pensamento jurídico empobreceu muito. Nos anos setenta fizemos uma reforma radical do direito de familia, porque a cultura dos juristas e seu sentido democrático o permitiu. Fecharam os manicômios, fez-se o Estatuto dos Trabalhadores…Hoje tudo isso seria impensável.



A esquerda permanece impassível... Por que?



Rodotà: A recuperação da cultura é a primeira premissa para recuperar a política de esquerda. Todos dizem que se deve mirar o centro, eu acredito que se deve começar por recuperar a esquerda. Craxi destruiu a socialdemocracia, o PCI se suicidou e esse cataclisma ainda permanece. Temos perdido a primazia da liberdade e hoje o que manda é o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade se decompôs, o país está se desfazendo. A política faz uso ostensivo da força, e o direito se esfarela.



A Europa nos salvará?



Rodotà: Não parece que a Europa viva um momento esplêndido. Crescem a xenofobia e o racismo, e a debilidade cultural da Itália se expande pelo continente. Trono e altar se aliaram de novo, agora de maneira distinta. Hoje assistimos a uma fusão entre mercado, fé e política, que tratam de organizar nossas vidas, manipulando o direito. Na Itália, a corrupção não só não é perseguida, como está protegida pela lei, como no escândalo da Proteção Civil: derrogaram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Nos anos setenta as comissões eram motivo de piada, e ainda assim havia compostura, um respeito pela coletividade. Craxi foi devastador, uma mudança de época. Agora, a máxima é: "Se Berlusconi faz, por que eu não vou fazer?”.



(*) Stefano Rodotà é ex–presidente da autoridade italiana defensora da proteção dos dados pessoais e ex–presidente, também, do Grupo do Artigo 29 sobre proteção de dados da União Européia.



Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Carta Maior


Visto que Saramago já havia falado sobre esse assunto, talvez prevendo - não que isso tenha sido muito complicado - o caminho trilhado pela Itália, me sinti motivado a postar o texto escrito    e postado por ele em seu blog pelos idos de junho de 2009. Não me parece que as escolhas dos italianos tem contribuido para se encontrar um caminho com soluções simples. Vejam se o texto de Saramago e tenha ampliada visão sobre as questões esboçadas por Stefano Rodotà.



A Coisa Berlusconi

Não vejo que outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente parecida a um ser humano, uma coisa que dá festas, organiza orgias e manda num país chamado Itália. Esta coisa, esta doença, este vírus ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vómito profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o coração de uma das mais ricas culturas europeias. Os valores básicos da convivência humana são espezinhados todos os dias pelas patas viscosas da coisa Berlusconi que, entre os seus múltiplos talentos, tem uma habilidade funambulesca para abusar das palavras, pervertendo-lhes a intenção e o sentido, como é o caso do Pólo da Liberdade, que assim se chama o partido com que assaltou o poder. Chamei delinquente a esta coisa e não me arrependo. Por razões de natureza semântica e social que outros poderão explicar melhor que eu, o termo delinquente tem em Itália uma carga negativa muito mais forte que em qualquer outro idioma falado na Europa. Foi para traduzir de forma clara e contundente o que penso da coisa Berlusconi que utilizei o termo na acepção que a língua de Dante lhe vem dando habitualmente, embora seja mais do que duvidoso que Dante o tenha utilizado alguma vez. Delinquência, no meu português, significa, de acordo com os dicionários e a prática corrente da comunicação, “acto de cometer delitos, desobedecer a leis ou a padrões morais”. A definição assenta na coisa Berlusconi sem uma prega, sem uma ruga, a ponto de se parecer mais a uma segunda pele que à roupa que se põe em cima. Desde há anos que a coisa Berlusconi tem vindo a cometer delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. Além disso, não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado fabricar para salvaguarda dos seus interesses públicos e particulares, de político, empresário e acompanhante de menores, e quanto aos padrões morais, nem vale a pena falar, não há quem não saiba em Itália e no mundo que a coisa Berlusconi há muito tempo que caiu na mais completa abjecção. Este é o primeiro-ministro italiano, esta é a coisa que o povo italiano por duas vezes elegeu para que lhe servisse de modelo, este é o caminho da ruína para onde estão a ser levados por arrastamento os valores que liberdade e dignidade impregnaram a música de Verdi e a acção política de Garibaldi, esses que fizeram da Itália do século XIX, durante a luta pela unificação, um guia espiritual da Europa e dos europeus. É isso que a coisa Berlusconi quer lançar para o caixote do lixo da História. Vão os italianos permiti-lo?

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