
Jorge Amado era amigo de Vargas Llosa, apesar das diferenças ideológicas. O primeiro era de esquerda e o segundo é liberal. As ideologias não os separaram, porque a amizade e o respeito eram mais fortes. Ao escrever sobre a literatura do amigo, o autor o faz com isenção e perspicácia. Nota que, “em seus romances políticos, um elemento intuitivo, instintivo e vital sempre superava o ideológico e jogava pelos ares os esquemas racionais”.
Até certo momento, como em “Cacau” e “O Cavaleiro da Esperança”, biografia romanceada e floreada de Luís Carlos Prestes, Amado fazia uma literatura panfletária, atendendo aos préstimos do realismo socialista. Llosa talvez exagere quando fala em “virada” literária, porque é possível que não tenha sido tão radical assim, daí a possibilidade de a crítica ser mais “elástica” do que a própria prosa do autor de “Tieta do Agreste”. Não há limpeza total de “pressupostos ideológicos”, por exemplo. De qualquer forma, o argumento do autor de “A Casa Verde” é sugestivo: Amado “realizou uma virada profunda em sua literatura, despolitizando-a, limpando-a de pressupostos ideológicos e tentações pedagógicas, e abrindo-a cada vez mais para outras manifestações da vida, a começar pelo humor, até chegar aos prazeres do corpo e aos jogos do intelecto. (...) Jorge Amado pôs-se (...) a rejuvenescer, a partir de histórias deliciosas como ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’, ‘Gabriela, Cravo e Canela’, ‘Tereza Batista Cansada de Guerra’, ‘Tieta do Agreste’, ‘Farda Fardão Camisola de Dormir’ e as que vieram depois, em um curioso desafio à cronologia mental, algo que fez dele, como escritor, uma espécie de Dorian Gray, um romancista que, livro após livro, brinca, diverte-se e se mostra como uma criança genial, com suas travessuras verbas, sensuais e engraçadas, em verdadeiras festas literárias”. Amado teve sorte: os “policiais literários” da União Soviética não sabiam português e as traduções certamente adocicaram a prosa virulentamente erótica e, mesmo, pornográfica de seus romances.

No ensaio “Cabrera Infante”, o cubano que escreveu o grande romance “Três Tristes Tigres” (seria interessante lê-lo em comparação com a prosa menos esfuziante e, quiçá, mais cerebral de Thomas Pynchon, nas referências ao mundo popular envolvidas e absorvidas por uma prosa altamente sofisticada e complexa), Vargas Llosa mostra-se mais atento do que na crítica empática (ainda que, no geral, verdadeira) a Amado. O autor de “Conversa na Catedral” escreve que, para Guillermo Cabrera Infante, o “humor (...) é (...) uma maneira compulsiva de desafiar o mundo tal como ele é e esfacelar suas certezas e a racionalidade em que se baseia, trazendo à luz as infinitas possibilidades de desvario, surpresa e disparates que ele mesmo oculta, e que, nas mãos de um hábil malabarista da linguagem como ele, podem se transformar em um deslumbrante fogo de artifício intelectual e delicada poesia. O humor é a sua maneira de escrever, ou seja, algo muito sério, que compromete profundamente a sua existência”.
A prosa de Cabrera Infante, explica Vargas Llosa, com o brilho de sempre, “é uma das criações mais autorais e insólitas da nossa língua, uma prosa exibicionista, faustosa, musical e esquisita, que não consegue contar nada sem contar ao mesmo tempo a si mesma, interpondo seus exageros e cabriolas, suas construções desconcertantes, a cada passo, entre o que se conta e o leitor, de modo que este, muitas vezes entontecido, dividido, absorvido pelo frenesi do espetáculo verbal, esquece o restante, como se a riqueza da forma pura tornasse o conteúdo apenas um pretexto, mero acidente”. A prosa de Cabrera Infante deixa mesmo esta impressão — a de que as palavras dançam, uma dança louca, e o leitor fica tonto, tendo de voltar várias vezes ao mesmo trecho, para não perder o fio da meada. Porque, e é isto que Vargas Llosa está dizendo, com precisão, em Cabrera Infante a linguagem, como conta, é tão importante quanto aquilo que é contado.
O ensaio “José Donoso, ou a vida feita literatura” é, em alguns pontos, hilário. O texto é de 1996 e, por isso, não teve como incorporar a polêmica biografia do escritor chileno, escrita por sua filha, publicada este ano na Espanha. Além de relatar as maluquices da família, Pilar Donoso revela que o pai era bissexual, que, acrescente-se, nada muda em sua literatura, pelo menos substancialmente. Vargas Llosa o retrata como um louco de gênio e garante que seu romance mais ambicioso é “O Obsceno Pássaro da Noite”.
Pepe Donoso era um grande contador de histórias por escrito e oralmente. Relatou, a uma plateia extasiada e assustada, que “uma taratavó atravessava os Andes em uma homérica carroça de mulas, recrutando prostitutas para os bordéis de Santiago, e outra, vítima de uma mania de embrulhar tudo, guardava suas unhas, seus cabelos, as sobras de comida, tudo que não servia mais, em belas caixinhas e sacolas que ocupavam guarda-roupas, armários, cantos, quartos e, por fim, a sua casa inteira”.
O personagem “mais sedutor” criador por Donoso é o velho de “El Lugar Sín Limites”, “que, no mundinho de caminhoneiros e capangas seminalfabetos em que vive, se disfarça de moça do povo e sai a dançar flamenco, embora perca a vida com isso”. Vargas Llosa afirma que Donoso escreveu “histórias de maior fôlego e mais complexas”, mas que a história do velho travestido “é a mais acabada de suas narrativas, na qual se encontra mais perfeitamente elaborado aquele mundo tresloucado, neurótico, de rica imaginação literária latino-americano, feita à imagem e semelhança das pulsões e fantasmas mais secretos de seu criador, que ele deixou a seus leitores”.
Fonte: Revista Bula
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