“Sabres e Utopias — Visões da América Latina” (Objetiva, 430 páginas, tradução de Bernardo Ajzenberg), de Mario Vargas Llosa, contém ensaios (alguns textos são mais artigos) sobre Somoza, Pinochet, Lula, Fidel e Raul Castro, Farc, Canudos (que mereceu o romance “A Guerra no Fim do Mundo”), Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, José Donoso, Cabrera Infante, Jorge Amado, revoluções, nacionalismo, democracia, liberalismo e outros assuntos. As nove páginas do ensaio “Cem Anos de Solidão: O Amadís na América”, sobre a obra-prima de García Márquez, valem o livro. Foi publicado em 1967, em cima da hora, com base na leitura direta, sem nenhuma fortuna crítica a sustentá-lo. Comentarei única e brevemente os textos sobre Jorge Amado, José Donoso e Cabrera Infante.Jorge Amado era amigo de Vargas Llosa, apesar das diferenças ideológicas. O primeiro era de esquerda e o segundo é liberal. As ideologias não os separaram, porque a amizade e o respeito eram mais fortes. Ao escrever sobre a literatura do amigo, o autor o faz com isenção e perspicácia. Nota que, “em seus romances políticos, um elemento intuitivo, instintivo e vital sempre superava o ideológico e jogava pelos ares os esquemas racionais”.
Até certo momento, como em “Cacau” e “O Cavaleiro da Esperança”, biografia romanceada e floreada de Luís Carlos Prestes, Amado fazia uma literatura panfletária, atendendo aos préstimos do realismo socialista. Llosa talvez exagere quando fala em “virada” literária, porque é possível que não tenha sido tão radical assim, daí a possibilidade de a crítica ser mais “elástica” do que a própria prosa do autor de “Tieta do Agreste”. Não há limpeza total de “pressupostos ideológicos”, por exemplo. De qualquer forma, o argumento do autor de “A Casa Verde” é sugestivo: Amado “realizou uma virada profunda em sua literatura, despolitizando-a, limpando-a de pressupostos ideológicos e tentações pedagógicas, e abrindo-a cada vez mais para outras manifestações da vida, a começar pelo humor, até chegar aos prazeres do corpo e aos jogos do intelecto. (...) Jorge Amado pôs-se (...) a rejuvenescer, a partir de histórias deliciosas como ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’, ‘Gabriela, Cravo e Canela’, ‘Tereza Batista Cansada de Guerra’, ‘Tieta do Agreste’, ‘Farda Fardão Camisola de Dormir’ e as que vieram depois, em um curioso desafio à cronologia mental, algo que fez dele, como escritor, uma espécie de Dorian Gray, um romancista que, livro após livro, brinca, diverte-se e se mostra como uma criança genial, com suas travessuras verbas, sensuais e engraçadas, em verdadeiras festas literárias”. Amado teve sorte: os “policiais literários” da União Soviética não sabiam português e as traduções certamente adocicaram a prosa virulentamente erótica e, mesmo, pornográfica de seus romances.
Numa leitura extremamente simpática, Vargas Llosa diz que, nos romances de Amado, “todas as desventuras do mundo não são suficientes para quebrar a vontade de sobrevivência, a alegria de viver, o esforço sorridente para dar sempre a volta por cima que animam seus personagens. O amor à vida é tão grande neles que são capazes, como acontece com a maravilhosa dona Flor com seu marido defunto, de ressuscitar os mortos e trazê-los de volta a uma existência que, mesmo com todas as misérias que traz consigo, está também repleta de momentos de gozo e felicidade. Essa fruição dos prazeres menores ao alcance do ser anônimo, que cintila em todas as suas histórias — saborear um copo de cerveja gelada, uma conversa deliciosa, contar uma piada picante, dirigir galanteios a um corpo atraente que passa, a amizade fraterna —, é muito intensa e contamina seus leitores, que costumam sair de suas páginas convencidos de que, por pior que seja a circunstância em que se vive, sempre haverá na vida humana um espaço para a diversão e outro para a esperança”. Concordo em parte com Vargas Llosa, pois, embora tenha sido um crítico intolerante da prosa de Amado, li-o com extremo prazer (e concupiscência) na adolescência, sem barreiras ideológicas, de esquerda ou de direita. Mas a leitura do crítico peruano quase transforma a literatura de Amado em auto-ajuda intelectual, embora seu objetivo seja, logicamente, outro. “Jorge Amado (...) exaltou o outro lado da moeda, a cota de bondade, alegria, plenitude e grandeza espiritual também contida na existência e que, em seus romances, fazendo todas as contas, acaba sempre vencendo a batalha em quase todos os destinos individuais.” Exagero, mas, considerando que neste ensaio de 1997, Vargas Llosa diz que Amado iria para o céu, a crítica “é” aceitável, pois escritor é tratado como “santo”.No ensaio “Cabrera Infante”, o cubano que escreveu o grande romance “Três Tristes Tigres” (seria interessante lê-lo em comparação com a prosa menos esfuziante e, quiçá, mais cerebral de Thomas Pynchon, nas referências ao mundo popular envolvidas e absorvidas por uma prosa altamente sofisticada e complexa), Vargas Llosa mostra-se mais atento do que na crítica empática (ainda que, no geral, verdadeira) a Amado. O autor de “Conversa na Catedral” escreve que, para Guillermo Cabrera Infante, o “humor (...) é (...) uma maneira compulsiva de desafiar o mundo tal como ele é e esfacelar suas certezas e a racionalidade em que se baseia, trazendo à luz as infinitas possibilidades de desvario, surpresa e disparates que ele mesmo oculta, e que, nas mãos de um hábil malabarista da linguagem como ele, podem se transformar em um deslumbrante fogo de artifício intelectual e delicada poesia. O humor é a sua maneira de escrever, ou seja, algo muito sério, que compromete profundamente a sua existência”.
A prosa de Cabrera Infante, explica Vargas Llosa, com o brilho de sempre, “é uma das criações mais autorais e insólitas da nossa língua, uma prosa exibicionista, faustosa, musical e esquisita, que não consegue contar nada sem contar ao mesmo tempo a si mesma, interpondo seus exageros e cabriolas, suas construções desconcertantes, a cada passo, entre o que se conta e o leitor, de modo que este, muitas vezes entontecido, dividido, absorvido pelo frenesi do espetáculo verbal, esquece o restante, como se a riqueza da forma pura tornasse o conteúdo apenas um pretexto, mero acidente”. A prosa de Cabrera Infante deixa mesmo esta impressão — a de que as palavras dançam, uma dança louca, e o leitor fica tonto, tendo de voltar várias vezes ao mesmo trecho, para não perder o fio da meada. Porque, e é isto que Vargas Llosa está dizendo, com precisão, em Cabrera Infante a linguagem, como conta, é tão importante quanto aquilo que é contado.
O ensaio “José Donoso, ou a vida feita literatura” é, em alguns pontos, hilário. O texto é de 1996 e, por isso, não teve como incorporar a polêmica biografia do escritor chileno, escrita por sua filha, publicada este ano na Espanha. Além de relatar as maluquices da família, Pilar Donoso revela que o pai era bissexual, que, acrescente-se, nada muda em sua literatura, pelo menos substancialmente. Vargas Llosa o retrata como um louco de gênio e garante que seu romance mais ambicioso é “O Obsceno Pássaro da Noite”.
Pepe Donoso era um grande contador de histórias por escrito e oralmente. Relatou, a uma plateia extasiada e assustada, que “uma taratavó atravessava os Andes em uma homérica carroça de mulas, recrutando prostitutas para os bordéis de Santiago, e outra, vítima de uma mania de embrulhar tudo, guardava suas unhas, seus cabelos, as sobras de comida, tudo que não servia mais, em belas caixinhas e sacolas que ocupavam guarda-roupas, armários, cantos, quartos e, por fim, a sua casa inteira”.
O personagem “mais sedutor” criador por Donoso é o velho de “El Lugar Sín Limites”, “que, no mundinho de caminhoneiros e capangas seminalfabetos em que vive, se disfarça de moça do povo e sai a dançar flamenco, embora perca a vida com isso”. Vargas Llosa afirma que Donoso escreveu “histórias de maior fôlego e mais complexas”, mas que a história do velho travestido “é a mais acabada de suas narrativas, na qual se encontra mais perfeitamente elaborado aquele mundo tresloucado, neurótico, de rica imaginação literária latino-americano, feita à imagem e semelhança das pulsões e fantasmas mais secretos de seu criador, que ele deixou a seus leitores”.
Fonte: Revista Bula
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